sábado, 26 de outubro de 2013

O último desabafo

De que serve tudo isso? A quem se destina? Cansada de se lamentar e de sentir todas essas coisas, Ela se prepara para o que deseja ser seu último desabafo "publico"! Percebe que a ferida esta exposta há muito tempo e já não entende mais o porquê se mostrar tanto. Sua intimidade, sua verdade, sonhos, desejos, alegrias, medos... Não muda nada, apenas se sente mais vulnerável. Suas escritas e emoções ficam jogadas no chão da sala como o brinquedo que a criança enjoou e não quer mais. Seus personagens tão reais andando em círculos... Pensamentos perdidos e velozes, que se atropelam e a atingem! Na volta para casa Ela salta do trem numa estação bem distante. Resolveu andar muito na esperança de que o cansaço físico a impedisse de refletir ainda mais sobre o imutável, o inatingível, sobre todas as coisas que não dependem de sua ação. Resultados que não estão mais em suas mãos ossudas. Por fim chega em casa e cai de joelhos... Aos poucos se encolhe em posição quase fetal, grita e chora sabe-se lá por quanto tempo, acolhida por sua própria solidão. Um barulho na janela chama sua atenção, é aquela ventada pré-chuva! Vem para lavar, vem chumbo grosso por ai, cheiro de grandes acontecimentos no ar...

Enfim a narradora aproveita o momento para encerrar seus trabalhos e se despedir.

Adeus!

(escrito ao som de Beirut e Cordel)

Carta para Pablo

Noca entra no bar e vai direto ao balcão. Chama pelo garçom mais antigo e descreve um rapaz: “Pablo! Pela descrição só pode ser ele!” responde o velho senhor. Noca deixa com ele um envelope e pede para que entregue ao Pablo se um dia ele retornar a aquele bar. Dentro uma carta escrita assim:

“Não sei seu nome, nunca me sentei com você, na verdade eu não te conheço e sei tantas coisas... Já sequei suas lágrimas muitas vezes, já dividi com você a cerveja e o cinzeiro, em meus delírios já estivemos na mesma cama fazendo amor! Mas sei que nada disso é real ou poderia ser, porque sempre que crio coragem de me aproximar, sempre que você de alguma maneira pressente que pode estar perto de ser feliz, você se levanta apressado e vai ao encontro de algo ou de alguém... Parece que pula de barco em barco, sem rumo, sem destino...

Eu lamento que você sofra tanto, doeu e mim cada pesar seu, mas reparei quando estive aqui da última vez que desde que te vi só tenho olhos para você... Que lança seu olhar cumprido sem nada enxergar, somente sua dor e seus conflitos.

Não pretendo voltar aqui, mas deixei uma cerveja paga para você, o nosso último brinde!
Desejo que você seja muito feliz... Queria apenas que você soubesse que um dia alguém que nunca quis te incomodar gostou de verdade de você!
Um beijo

S.E.
Noca”


Noca saiu apressada com medo de trombar com o Pablo no caminho. Aos poucos sua imagem foi sumindo na rua, sem deixar rastro do seu destino.

Historias de Meadora: a despedida do retirante

O dia nasceu, a tarde passou e por fim a noite caiu. Foi assim por algumas semanas e Meadora que antes fora carregada por tantos hectares agora havia se tornado vigilante.
O viajante que a transportou por um curto espaço de tempo estava adormecido no chão, deitado sob a árvore que já nem era mais tão rasteira assim. Meadora só abandonava sua forma de menina e deixava o peito macio do jovem-velho rapaz para pegar água de uma fonte ali por perto.
Rapidamente enchia sua boca com aquele líquido translúcido e retornava para alimenta-lo. Meadora contava historias para ele e alisava seus cabelos macios. Ela o beijava e sussurrava em seu ouvido coisas bonitas, coisas que ela desejava que ele se recordasse se um dia voltasse a acordar. O tempo passava e nada dele despertar... Certa noite Meadora escutou os uivos dos lobos e sentiu uma sensação tão familiar. Fechou os olhos e cantou junto! Em sua cabeça, fleches de uma prainha branca, de um barqueiro encantador, areias quentes, tubarões falantes e então FRIO! Sentiu um arrepio forte na espinha, uma dor na alma como se revivesse um desmembramento... A jovem não guardava lembranças doutrora, mas seus sentidos permaneciam vivos. Seu corpo tremeu com força e ela percebeu que iria desmaiar, enfraquecida se arrastou até a fonte. Ao chegar à margem viu seu reflexo na água e notou que os dias passaram. Estava com muita sede e bebeu daquela seiva ate sentir-se saciada! Caminhou lentamente na direção do Retirante e viu em seu rosto todo o cansaço que ele sentia. Ela se lamentou, mas já não podia mais esperar ali... Parada... Tinha muito desejo de viver! Meadora fez de um fio do próprio cabelo uma corrente e de uma de suas lágrimas um pingente, que brilhava feito um cristal! Colocou na palma da mão do Retirante como uma lembrança do tempo que "viveram"... Beijou o belo mais uma vez, devolveu a capa com a qual um dia ele a cobriu e partiu. Coração apertado, lutado contra si mesma... 

Ela olhou para o céu e notou que conseguia se guiar pelas estrelas. Não sabia aonde iria chegar, mas tinha certeza que chegaria...

"Alguma coisa diz que é pra eu ir embora
E outra diz que eu quero você pra mim"

Basta


Basta de promessa que não se cumpre
De pesar que não cesse
Trilha que não se cuida
Lágrima que não seca

Basta de sentimento que não se assume
De medo que governa
Chega de solidão que une
Desejo que impera

Basta de choro escondido
Música que ninguém escuta
Buraco que não fecha
Chega de pedacinho de vida
Basta de final de festa!

Dente de Leão


Finalmente tudo ficou claro! Ela sentiu que a última peça daquele quebra-cabeça gigante terminava de se encaixar. Ela pediu em reza a semana inteira por um sinal, por um indício... Voltando para casa ficou intrigada com uma flor no chão, quase tirou uma foto... Era um Dente de Leão. JURO!
Estava tão exausta que dormiu a tarde e a noite inteira, não queria ver a cara do mundo ou ler qualquer coisa que lhe tirasse o sono. Então logo pela manhã foi confirmar suas sensações...
Foi duro, mas percebeu que TUDO que Ele fez e deixou de fazer foi por Ela¹ e que Ele nunca saiu do lugar. Ele ainda está sentado, às 7hs da manhã, fazendo sua sagrada pausa para um café com Ela¹. E talvez seu maior medo seja de ir buscá-la e descobrir que a utopia do seu sonho só será real em pensamentos. Mas enfim, Ele não sai daquela mesa a mais de um ano, como poderá descobrir se Ele e Ela¹ um dia serão felizes juntos? E sabe, a última cabeça que se deitou no travesseiro Dele não foi a Dela, porque todas as noites, é com Ela¹ que Ele dorme: presa nas pálpebras; enrolada nos cabelos; instalada e dona da cama, coberta, coração e claro do travesseiro!

Ela se levantou da mesa onde digitava suas palavras cansadas, batidas e não teve forças nem para chorar. Na sua cabeça ecoava a certeza de que NADA foi para Ela e não importava o quanto dissessem o contrário que Ela nunca mais iria acreditar. Resolveu acender seu fiel companheiro, aquele que realmente desejava seus lábios e deu longas tragadas. A cada fumaça que soltava tentava se esvaziar junto...

Obrigada pela resposta!

Ela¹: a única 

Alice: a toca

Alice se curvou para alcançar debaixo da cama, as mãos procurando por sua mala lilás de bolinhas verdes! Levantou-se com ela e quando a abriu para colocar suas roupas dentro, reparou que havia uma passagem secreta. Curiosa que só, foi se inclinando para enxergar melhor e "pluft", escorregou lá para dentro! Na verdade a quem diga que ela mergulhou e eu acredito que tenha sido assim mesmo. Alice e sabida e só faz o que quer, quando acredita que é chegada a hora. Se ela pulou para dentro de si mesma e porque sabe que está pronta para tudo que vai encontrar e caso ainda não esteja, quando chegar o momento ela estará!

Ensaio sobre a mentira

A pergunta que sempre me faço agora me parece estar respondia... Não é para os outros que mentimos e sim para nós mesmos! A mentira nos joga ao confinamento, pesa no peito e na alma. Só a verdade pode trazer a libertação!

 O principal é não mentir para si mesmo. Quem mente para si mesmo e dá ouvidos à própria mentira chega a um ponto em que não distingue nenhuma verdade, nem em si, nem nos outros e, portanto, passa a desrespeitar a si mesmo e aos demais. Sem respeitar ninguém, deixa de amar e, sem ter amor, para se ocupar e se distrair entrega-se a paixões e a prazeres grosseiros e acaba na total bestialidade em seus vícios, e tudo isso movido pela contínua mentira para os outros e para si mesmo. Aquele que mente para si mesmo é o primeiro que pode se sentir ofendido. Por às vezes é muito agradável ofender-se, não é mesmo? É que ele sabe que ninguém o ofendeu, e que foi ele mesmo que inventou a ofensa e mentiu para enfeitar, ele mesmo exagerou com o fito de criar um quadro, aferrou-se à palavra de um arqueiro fez um cavaleiro –, ele mesmo sabe disso e ainda assim é o primeiro a ofender-se, e ofender-se a ponto de achar isso agradável, de experimentar uma sensação de grande prazer, e assim chega também a uma animosidade verdadeira”…

Os Irmãos Karamazov de Fiódor Dostoievski - tradução de Paulo Bezerra, pela editora 34

Ná, ne, ni: Noca! (com trilha)

Quando Ela nasceu por pouco não recebeu o nome de Camila... Os pais da menina pretinha que chegou no elevador do Hospital Maternidade São Camilo pensaram um pouco mais e acharam que ela tinha cara de Natália! A danadinha foi crescendo: polêmica, crítica, esperta, alegre... Era a hora de mandá-la para a escola! Primeiro dia e Ela com sua mania de se perder por aí, vai parar na sala do diretor. Lembro-me até hoje daqueles olhos gigantes admirados pelos quadros na parede com nós de escoteiro e Ela perguntando na lata "foi você que fez todos?". José Augusto, na ocasião diretor do Colégio São João Gualberto, desceu as escadas com a cabeludinha saltitante e orientou os pais a colocá-la numa série a frente, pois Ela teria condições de acompanhar a turma. Foi nesta época em que conhecia as letras que ganhou de sua mãe o apelido esquisito, mas que Ela sempre amou: Noca! Ele vinha acompanhado de uma música, mas essa vai permanecer em segredo... Noca esticou, mas não abandonou o velho hábito de se perder e se encontrar, de sair perguntando e descobrindo tudo o que deseja saber... Os medos não são mais do espantalho ou do monstro do armário, mas se eles não foram capazes de torna-la infeliz antes, não será agora que vão impedi-la de viver!

"Fala pra ele
Do disco do tom jobim
Do seu apelido e de mim
E chora"

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

(por)Enquanto



Enquanto espero, aprendo

Enquanto aprendo, troco

Enquanto troco, cresço

Enquanto cresço, vivo

Enquanto vivo, espero...

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Noca: de volta ao bar

Quando ele entrou os olhos dela brilharam! Noca retornava no mesmo bar quase que diariamente na esperança de reencontrar o belo rapaz do outro dia. Mas a alegria que a moça sentiu foi substituída por uma imensa agonia... O jovem se escondia atrás das lentes de seus óculos escuros, mas era possível ver as lágrimas que corriam por seu rosto. Noca chegou a se levantar, mas... Não! Uma força maior que a própria gravidade puxou ela de volta para a cadeira. Era como se ali se cumprisse um ritual, que não devia ser interrompido. Ela percebeu que ele buscava naquele bar um refúgio do dia a dia, uma pausa para seus pensamentos, uma bebida quente para aquecer seus sentimentos, um balcão para apoiar os cotovelos enquanto se entregava ao próprio choro. Noca não desejava incomodar e fez companhia para ele a distância. De sua mesa ela lhe deu um abraço e fez carinho... Imaginou-se pegando um lenço de sua bolsa e secando seu pranto. Já se passavam mais de quarenta minutos e então ele olha para o relógio e sai apressado, como da outra vez. “É... Ele deve estar indo ao encontro de alguém” diz Noca a si mesma com imenso pesar. Agora era a vez dela acender um cigarro, dar outro gole na sua cerveja quente e lagrimar...

(escrito ao som de Tristão e Isolda - Wagner)

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Ela e o Escuro

Ela abriu a porta da casa vazia e se reconheceu! Percebeu-se nos móveis silenciosos, no sofá solitário... No porta retratos sobre a estante, uma foto com um sorriso falso lhe cobrando para ser feliz! Oh Deus! Ela havia jurado o dia inteiro que não faria mais visitas ao Escuro, mas não imaginava que o receberia como hóspede naquela noite. "Pode entrar, mas vá antes do amanhecer, assim que eu dormir..." disse Ela tomando outro gole de rum. Ela não podia estar bebendo, mas rodava na penumbra com a garrafa na mão. Cansou de pensar em não pensar, de lembrar de se esquecer, do próprio humor inconstante. Afundou o corpo na cama e chorou suas lágrimas gordas outra vez. Fingiu que não estava ali, que era outra pessoa e se perdeu em seus delírios... Desejou que o tempo voasse, para que as respostas surgissem, para que a cura se instalasse, para que a transformação acontecesse! Adormeceu falando para as paredes que já eram suas velhas e íntimas conhecidas...

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Historias de Meadora: o encontro com o retirante II

E então depois de longos quilômetros carregando Meadora nos braços, atravessando os dias e as noites, finalmente o cansaço parecia ter acometido o viajante. Ele procurou em meio as árvores rasteiras um canto seguro para se deitar e colocou o seu pequeno embrulho sobre o peito. A lua brilhava cheia no céu escuro, não demorou muito para ele dormir profundo. Meadora percebe uma chance de fugir e retomar o próprio caminho, mas qual era mesmo? Suas últimas lembranças claras eram a de sentir frio, ser sugada por um furacão e então acordou no meio do nada, onde logo foi encontrada pelo bom homem que agora repousava. Tentou ver novamente o rosto dele, esticou sua cabeça e mirou bem fixamente... Ele era lindo! Tinha um sinal logo abaixo de um dos olhos que a deixou hipnotizada. Ela desejou tê-lo dentro de si uma vez ao menos antes de partir. Foi quando aos poucos retomou sua forma de mulher, feita de seios e coxas quentes, abriu cuidadosamente as vestes do Retirante e o tocou. Inclinou-se sobre ele beijando-lhe os olhos e os lábios, ele respondeu com um gemido bom! Ela tocou as próprias partes e umedeceu a boca dele com o mel que saia dela... Sentou-se sobre ele que a penetrou, ainda adormecido... Meadora se contorcia de prazer e paixão! Teve com ele por muito tempo, até chegarem ao ápice e então dela brotou um rio de águas claras e doces. Exausta e completamente extasiada Meadora decide adiar sua partida para a próxima parada. Veste o jovem, deita em seu peito e retoma a forma de menina...

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Ela: essa nova mulher ou a mulher da vez

Quase tudo que Ela andava fazendo era assim: no silêncio, resolvido praticamente na última hora... Decidiu que precisava de pele nova, a antiga estava lhe dando coceiras. Ainda na dúvida se daria certo ou não, se era mesmo isso ou aquilo, resolveu mudar! Chegou ditando as fadas como desejava ser desta vez e a transformação logo começou. A cada mexa do seu cabelo que caia no chão ela se despedia de alguma parte do passado, tão velho que antes que a madeixa tocasse o piso Ela já não se recordava mais do ocorrido. Foi aos poucos se despetalando, soltando as escamas, trocando as penas... No reflexo do espelho observava o seu renascimento, outra vez! Era como se naqueles encontros ela enfiasse a mão goela adentro e retirasse a nova mulher que estava presa lá no fundo, pedindo para surgir! No final daquela tarde ainda tinha a mesma voz, o mesmo nome... Mas agora era possível ver por fora algumas das mudanças que Ela fez lá dentro...

"Eu fiquei maluca"

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Histórias de Meadora: furacão vermelho III ou o encontro com o retirante

Meadora estava deitada no chão, recém-nascida, recolhida e conformada com sua tão conhecida solidão. As lágrimas escorriam por seu rosto, sentia fome, frio, medo... Foi quando escutou barulho de passos aumentando em sua direção e rapidamente camuflou suas formas de mulher no corpo de uma menina e fez silêncio. Um homem a descobriu e aproximou-se tanto dela que quase a tocou com o nariz. Sem pestanejar ele a tomou em seus braços e secou suas lágrimas. Retirou o próprio casaco e a envolveu. Há tempos que Meadora não se sentia protegida, acolhida... Aquele desconhecido lhe era tão familiar... Ele se levantou e partiu com ela no colo. Meadora estava assustada, mil perguntas ecoavam na sua cabeça “quem é ele? O que ele fará comigo? Como pretende cuidar de mim? E quando ele descobrir que não sou tão pequena? Para onde está me levando?” Os pensamentos de Meadora foram interrompidos por um sono gostoso que o caminhar do retirante provocou. Ele a embalava e conversava com ela, hora com palavras, hora por pensamentos e teve momentos que ele apenas a abraçava mais forte e então Meadora sentia as batidas de seu coração. Meadora experimentava algo diferente, ela que não sabia confiar em ninguém, sentiu que podia dormir tranquila naquele colo quente...

"Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigos
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado."

Alice: o cão de três cabeças

Alice estava no ponto esperando seu ônibus e reparou num cachorro de três cabeças parado na calçada. Magrelo, cheio de falhas no pelo, olhar perdido... Parecia sem esperança. Alice se distraiu no celular e quando voltou a procurar pelo bicho o encontrou deitado no meio da pista! Um ou dois carros desviaram dele, mas o caminhão que seguia em alta velocidade não conseguiria fazer o mesmo. Sem pensar Alice saiu correndo e o tirou quase que no ultimo minuto daquele lugar! Ambos tremendo, ela se sentou com ele no colo e chorou... Ficaram ali, abraçados, o mundo em pause e no mute, só os dois. Era como se Alice tivesse resgatado a própria vida. O cachorro a agradeceu com umas lambidas (dadas pelas três bocas) e seguiu seu caminho, o rabicó abanando, o andar mais feliz... Alice se levantou, voltou para o ponto e tornou a esperar seu ônibus.

domingo, 13 de outubro de 2013

Histórias de Meadora: furacão vermelho II

O furacão girava bruscamente, triturado cada parte do ser de Meadora. Sua carne, sangue e alma se misturavam ao gelo e as cinzas. Ela sentia todas as dores e resignadamente aceitava cada uma delas. O ciclone rodou e rodou até que Meadora perdeu a consciência de quem foi e entendeu que agora ela e o gigante de vento eram um. Alucinada no misto de agonia e prazer ela adormeceu! Girou, rodopiou, trovejou e assim seguiram dias a fio. Eis que um arco-íris apareceu no céu, o sol queimou o vermelho, aqueceu as partículas e o furacão se tornou uma grande nuvem. Gotas gordas pingaram, pesadas e coloridas. Uma semente caiu e penetrou a terra. A chuva aguou o solo e uma folha bem verde brotou do chão. Da folha, uma flor e da flor o corpo de uma mulher começou a se refazer. Ossos, unhas, dentes, cérebro, vísceras, coração, cabelos, lábios grossos, seios miúdos, coxas roliças... Pouco a pouco sua alma gotejou sobre sua pele e uma brisa suave entrou pelo seu nariz inflou seus pulmões e lhe devolveu a vida. Meadora despertou e deu um grito alto que ecoou por toda a região. Não reconhecia onde estava. Não havia ninguém. Meadora estava sozinha, por conta própria...

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Dre

O despertador de Dre não precisou tocar, "não se acorda quem nem dormiu" pensou ele virando-se para o outro lado. Pegou na cabeceira da cama seu canivete e talhou a parede contabilizando mais um dia. Fechou os olhos e aguçou os ouvidos, escutando o silêncio da casa, a respiração do seu cachorro que dormia tranqüilo na sala. Sentiu inveja dele, pensou que desejava nascer um bicho na próxima vida, se é que existe... Lembrou-se que tinha que trabalhar e interrompeu os próprios pensamentos, sentou-se na cama ainda no escuro e chorou... Tomou um banho rápido, ajeitou seu lindo cabelo, bebeu um gole de café preto e já ia saindo quando notou que faltava algo! Tateou os bolsos da jaqueta, no direito encontrou suas chaves, no esquerdo seu maço de cigarros amassados... Desceu as mãos para o jeans, a carteira estava lá, as luvas... "Claro!" Olhou para seus pés e notou que faltava sua bola de ferro! Entrou no quarto escuro e tropeçou sobre ela. Soltou uns cinco ou seis palavrões bem cabeludos, sentou-se novamente na cama, prendeu o aço em seu tornozelo (que estava bem ferido de carregar aquele peso a tanto tempo) e saiu arrastando sua companheira. "Agora sim, tudo aqui!"

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

As cartas de Noca II

O dia ainda estava clareando e Noca já saia para trabalhar. Como de costume, enfiou os dedos compridos e sem esperança pela caixinha do correio quando foi surpreendida com um envelope. Sentiu uma onda de calor tomar seu corpo, era uma carta dele! Noca reconhecia pela espessura do papel, pelo decalque que as palavras intensas geravam, pelo cheiro doce da carga da caneta... Puxou com tudo e levou o papel contra o peito que batia feliz e descompassado. Olhou o destinatário e reconheceu a letra dele, seus olhos sorriram! Estava para perder o ônibus então correu e guardou a carta no bolso para ler com calma mais tarde. Passada a manhã e o almoço, Noca foi até a esquina que costumava lhe fazer companhia na hora do cigarro, para saborear tranquilamente seu envelope. Abriu com cautela e passou os olhos pelas escritas uma, duas, três... cinco... dez... inúmeras vezes! A mente e o coração trabalhando em movimentos opostos. Não entendia, mas sentia! Sim, ainda pairava um certo silêncio entre eles... Noca queria responder, mas só conseguiu deixar escapar uma única palavra "obrigada!"

Diário dos Sonhos: pés molhados

Sonhei que encontrava com um amigo numa praça. Havia chovido muito e em alguns locais a água empoçou bastante. Eu estava usando uma sandália aberta e tentava desviar das poças de lama para não sujar os pés. Meu amigo me ajudou como pode, me pegou no colo, girou, ergueu... Até que escutamos um barulho e olhamos para trás. Uma pequena "onda" de água e terra nos alcançou molhando até os nossos joelhos!
Enfim, não adianta lutar contra o inevitável...

A Sra. T

Depois de um período de jejum finalmente chegara o dia de se encontrar com a Sra. T, enfim nutrir-se! A tempos ansiava por este momento: sentar-se frente a grande sabia, a mais velha, aquela que auxilia no desenrolar do novelo. E eram muitos os bolos de linha! Então depois de escalar o morro que levava até a Sra. T, Ela entrou e sentou-se ao lado de Noca, Meadora, Alice, A Mulher Invisível... Estavam todas presentes! Cada qual portava sua linha e agulha nas mãos. Sem mais delongas começaram o delicado trabalho de tecer seus medos, mistérios, sonhos, segredos, amores... A Sra. T orientava calmamente, pacientemente, carinhosamente e ao final do tempo todas elas voltaram para casa com um pé de meia para aquecer um dos pés...

terça-feira, 8 de outubro de 2013

As cartas de Noca

Na família de Noca escrever era hereditário. Herança esta que ela descobriu cedo, brincando na máquina de escrever de sua avó. Aliás, sua avó materna foi sua grande mestra! Nos sábados a noite costumava ler suas poesias e cantar músicas da época que tentou carreira no rádio para sua neta, que ficava encantada... Na infância, Noca começou a rascunhar seus versinhos e passou a presentear seus amores com eles. Quando ela se apaixonava comunicava o garoto assim, por escrito! Os meninos eram muito novos e não compreendiam a profundidade daquela jovem mulher, que iniciava também naquela fase suas dores de desamores... Noca cresceu e com ela o carinho pelas palavras e seus significados. Um dia resolveu "organizar" todos os seus escritos  num local só e abrir seu livro para quem quisesse ver. Descobriu que era uma maneira de expressar seus sentimentos, diluir angústias, prosear, inventar liberdade... Conheceu pessoas que faziam algo parecido e passou a se corresponder com algumas delas. Diariamente, fizesse chuva ou sol, ela ia até a caixinha do correio e colocava sua mão lá dentro, coração aos pulos, ansiosa por suas cartas! Uma em especial sempre fazia seu peito bater mais forte e a respiração ficar ofegante. Mas teve um dia que a carta não chegou... Nem no outro, ou depois deste, seguinte a aquele... Os olhos de Noca molhavam seus papeis e ela relia as trocas mais antigas tentando reviver emoções de outrora. Aquele silêncio era cruel, doía em cada parte do corpo de Noca. Sentou-se mais uma vez em um canto qualquer e escreveu cartas para o vento e para o tempo. Aquelas que infelizmente você jamais vai ler...

domingo, 6 de outubro de 2013

Alice: o coelho e o relógio

Alice acordou cedinho, passou a mãos nos livros e foi para o parque. Tinha tanto para ler e fazer, não desejava perder tempo! Chegando lá, andou um pouco a procura de um espaço tranquilo, de preferência debaixo de uma árvore... Sim, aquela era perfeita! Abriu sua canga e seus livros e começou a estudar. Passadas algumas horas que estava envolta aos próprios pensamentos, reparou num coelho branco: gravata borboleta, relógio grande nas mãos, andando pra lá e pra cá resmungando seu atraso. Ela o olhou por cima do livro e retomou sua leitura. Foi quando o coelho já nervoso cutucou Alice pelo braço:
- Você não está me vendo aqui? Estou atrasado e não tenho o dia todo para esperar você vir atrás de mim! – esbravejou o coelho apontando as horas de seu relógio dourado.
- Este é o seu relógio, não o meu. Pode continuar no seu caminho que não pretendo sair do meu. – respondeu calmamente Alice.
O coelho branco ficou rosado de tanta vergonha e aceitou o conselho da jovem, tomando seu rumo! Alice? Bem, ela terminou sua leitura, comeu uma tapioca, dobrou a canga e no final do dia nem se lembrava mais do coelho irritadinho.

Histórias de Meadora: furacão vermelho

Enquanto Meadora estava deitada em vigília sobre o gelo o mundo continuou a girar. Do seu “posto”, ela escutava conversas ao redor, histórias sobre o mar e seus encantos. Lendas das criaturas que habitavam o oceano, sobre o Barqueiro e pescadores... Meadora escutou um barulho alto, sentiu um frio ainda maior lamber sua pele e subir por sua espinha: do céu brotou um furacão! Ela olhou para as margens querendo ver se Dna. Quitéria estava em segurança e então se deparou com a grandeza daquele ser de vento que engolia a neve e as cinzas, como quem ara o solo preparando para o próximo semeio. O danado era tão forte e intenso que rachou o congelado das águas no momento que as atingiu. Seguiu na direção de onde Meadora se segurava e a puxou com força. Ela fechou os olhos por um segundo, então os abriu novamente, beijou o mar e se soltou. Entendeu que não havia como(pra que) resistir, lutar contra a determinação do Tempo, do destino, do (não)querer... De olhos bem abertos, o mais que pode, ela se despediu e assistiu mais uma transformação do local. Meadora foi sugada para dentro do ciclone que torceu, virou e revirou todo seu corpo, até que num suspiro ela se entregou e explodiu! O furacão tingiu-se do vermelho sangue de Meadora e partiu em tempestade, para trovejar em outro lugar...

"Tempestade, vendaval (emocional)
Tem piedade de quem..."

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Alice

Alice estava encostada no bar do salão. Virou para traz e pediu um suco para o rapaz que alisava o balcão com um paninho surrado. Ficou observando as pessoas se mexendo, vez ou outra marcava o ritmo da música com os pés. Um jovem se aproximou e a convidou para dançar, Alice agradeceu com um sorriso e negou com a cabeça. O suco chegou e ela nem havia dado o primeiro gole quando outro homem se ofereceu para lhe pagar um drink. Mesmo sorriso, mesma negativa. Foi quando uma garota chegou e perguntou se ela não queria dançar... Alice novamente sorriu e respondeu: 
- Estou esperando!  
- Um par? - indagou a garota
- Não, "A" música!
Alice terminou de tomar seu suco fazendo um barulho danado com o canudo. Escutou sua canção nas caixas de som e finalmente saiu dançando sozinha, rodando e pulando pelo salão.

"Just try to see in the dark
Just try to make it work"

Noca: chico, soneto e suspiro

Noca adorava uma poesia! Vez ou outra, ao ler um versinho aqui, um soneto acolá sentia seu coração ser invadido por diversas cores. Às vezes escapava uma lágrima, noutras um sorriso de canto... Eventualmente ensaiava escrever algo tamanha era sua inspiração, mas logo parava. Lia, relia, amassava seus esboços e apenas suspirava.

Eis o último ladrão de “respiros” profundos:

Soneto

Por que me descobriste no abandono
Com que tortura me arrancaste um beijo
Por que me incendiaste de desejo
Quando eu estava bem, morta de sono

Com que mentira abriste meu segredo
De que romance antigo me roubaste
Com que raio de luz me iluminaste
Quando eu estava bem, morta de medo

Por que não me deixaste adormecida
E me indicaste o mar, com que navio
E me deixaste só, com que saída

Por que desceste ao meu porão sombrio
Com que direito me ensinaste a vida
Quando eu estava bem, morta de frio


Chico Buarque