domingo, 3 de dezembro de 2017

eu ou nós

Não sei se todos sabem, mas sou Musicoterapeuta e provavelmente vai soar como novidade pra muita gente, porque normalmente eu não falo da minha graduação simplesmente porque eu tenho o mau "costume" de me sentir meio fraude. Não sei ler partituras. Não lembro como "reger" o tempo com as mãos. Não sei tocar violão. Nessa sociedade x negrx é tido como alguém que sabe menos e hoje percebo o tanto que eu ainda sofro com essa crença limitante.
Minha escola na música começou aos sábados, solfejando os "tican can can" do maracatu. Eu sempre me lembro com calor e alegria do que senti quando vi a batucada pela primeira vez e eu disse pra amiga que me apresentou para aquele universo "Marcela, obrigada por trazer minha alma pra casa!".
Sou filha de uma mulher branca e de um homem negro, eu era a neta branca nas festas da minha avó Horminda e a "morena" das festas da minha avó Alayde - que Oxalá as tenha!
Só quem nasceu "pardx" no Brasil sabe o que é não saber quem é! Só quem nasceu nessa condição entende a emoção que dá quando a gente se encontra com a nossa raíz.

Minha vivência com o maracatu não foi só de flores e felicidades, talvez muita gente ainda negue, mas o rolê aqui em SP já foi bem mais branco e elitizado! As coisas têm mudado, num passo que ainda parece lento, mas inegavelmente está mais colorido.
O machismo também impera, mas a cada dia que passa as mina rocheda tão segurando o baque, o apito dando a letra nas toadas, revelando e denunciando as tantas violências que a gente já engoliu a seco!

Nesse caminho aí de música e encontros eu fiz grandes amigos, vivi amores e tem uma lista de pessoas que me ajudaram a chegar onde estou e eu sempre envio um axé pelo ar desejando que elxs sejam felizes. 
Tem uma pessoa em especial que me ajudou a entrar na faculdade, quando eu já tinha me convencido que eu não era capaz e que isso não me serviria de nada meu primeiro namorado me convenceu a tentar e não me deixava desistir. 

Um dia, num dos lugares que trabalhei como recepcionista, na empresa que eu mais sofri com racismo na vida eu quis concorrer a uma promoção para assistente administrativo e ouvi da minha chefe que eu devia me colocar no meu lugar.
Fui me encontrar com o meu irmão chorando muito, porque todas as vezes que as antigas assistentes brancas se demitiam por não aguentar a chefe eu acumulava função e fazia o meu trabalho de recepcionista e o delas: qual era o meu lugar então? Qual é o lugar da negra no mercado de trabalho?
Eu continuei buscando tentar responder a essa pergunta e eu encontrei parte da resposta! Encontrei o CAPS! 

Em 2011 comecei a trabalhar na área da saúde mental e na minha primeira experiência num lugar que está para cuidar eu adoeci. Sofri intolerância religiosa pesada, pessoas se negavam a compartilhar objetos comigo e até devolveram ou doaram coisas que compraram de mim antes de saber que eu era umbandista.
Eu trabalhava 40h semanais, ia direto pra faculdade em Santo Amaro, chegava em casa e fazia torta e lanches pra vender no dia seguinte, eu dormia DEZ HORAS POR SEMANA e eu nunca era boa o bastante em lugar nenhum. Eu queria morrer de verdade e planejava como fazer isso. Me tratei por mais de um ano para ansiedade e depressão.

Eu me formei, troquei de empresa e continuo trabalhando em CAPS. Muita coisa mudou nesse tempo, mas algumas coisas ainda acontecem: racismo, machismo e intolerância religiosa estão na lista das repetições.

Nesse sábado fizemos o fechamento da II Semana AfroCAPS com uma linda batucada e uma feijoada de responsa e quero repetir um pouco do que eu disse lá: apesar do clima de festa ainda temos muito pelo que batalhar, ainda temos muito que lutar! Num país que foi alimentado e nutrido pelo leite e sangue das mulheres negras não da pra aceitar esse não lugar que nos destinam. Nós não vamos mais pedir licença pra existir, nós vamos tomar o poder, a fala e os espaços!

Gratidão a minha família que está sempre comigo nas minha lágrimas e nos meus sorrisos!

Gratidão imensa a todas as pessoas que estão no relato da minha vida mesmo que "negativamente", eu batalho pra que mais ninguém precise aprender a se fortalecer com a dor que a discriminação provoca.

Gratidão as meninas que estiverem lá e as que não puderam, vocês estavam!

Gratidão pra quem emprestou instrumentos, pra quem me ensinou a tocar!

Gratidão aos colegas e amigos do trabalho que correram junto, que fizeram o exercício de se desconstruir e se refazer, se repensar, repensar a prática da nossa clínica!

Gratidão ao axé que corre nas minhas veias, gratidão a essa ancestralidade que me permeia todos os dias!

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